quarta-feira, 22 de outubro de 2014

DE ONDE VEM E PARA ONDE LEVA A CORRUPÇÃO? UMA ENTREVISTA COM OS JORNALISTAS CLÓVIS DE BARROS FILHO, PROFESSOR DE ÉTICA NA USP, E SERGIO PRAÇA, DOUTOR EM CIÊNCIA POLÍTICA, E AUTORES DO RECÉM-LANÇADO CORRUPÇÃO: PARCERIA DEGENERATIVA

Corrupção é uma palavra desgastada. Mesmo assim, é polêmica e relevante. O que leva à corrupção? Trata-se apenas de uma questão de oportunidade? Em período de eleição, a seriedade de seu impacto sobre a sociedade ganha ainda mais importância. Nesse contexto, os jornalistas Clóvis de Barros Filho, professor de ética na USP, e Sergio Praça, doutor em Ciência Política, pesquisador do Cepesp da FGV-SP (e autor de um blog neste site) uniram-se para refletir sobre o tema, no livro Corrupção: Parceria Degenerativa, lançado em setembro, pela editora Papirus 7 Mares.
Sem pretensões analíticas ou partidárias, os autores procuram destrinchar conceitualmente os mecanismos de ação e as consequências da corrupção sobre as pessoas e sobre o coletivo. Discorrem também sobre os avanços nas formas de combate à conduta de desvios. Em entrevista a Época NEGÓCIOS, Barros e Praça deram um passo atrás, para refletir sobre a origem da corrupção – será que potencialmente somos todos corruptos? – e sobre uma revolução moral que poderia levar o mundo para um lugar onde essa palavra não faria sentido.
              
No livro, vocês afirmam que alguém que comete corrupção não consegue ter sua imagem mais desvinculada desse fato. Mas, no cenário político brasileiro, a corrupção virou algo corriqueiro. Os principais nomes estão vinculados a, no mínimo, especulações de corrupção e, mesmo assim, continuam tendo eleitores. Não seria uma contradição?
Barros - Não. No caso de uma eleição presidencial, há um afunilamento da oferta eleitoral. Há muito menos opções do que numa eleição legislativa. Temos dois candidatos no segundo turno. Você tem que votar em algum dos dois. Isso gera uma consequência que eu acho ainda pior: o fato de as escolhas eleitorais virem quase sempre acompanhadas de um discurso de distanciamento por parte do eleitor. “Eu votei em Fulano, mas...”. Isso geralmente é justificado por um desprezo ainda maior pelo candidato adversário. Há um recuo, uma pobre adesão opinativa do eleitor em relação a seus escolhidos. As opções eleitorais são usadas muito mais no sentido da desconstrução da identidade alheia do que no de construção da própria. Você vê hoje a violência com que o pessoal do Sudeste se refere ao do Nordeste, em função de certa preferência eleitoral. Essas eleições têm despertado um ódio significativo entre as pessoas. Esse ódio não vem domesticado de consistência argumentativa. Ele me parece vazio e, portanto, preocupante. O espaço público atravessado por afetos fortes e desacompanhado de argumentos não dá racionalidade nem a chance de aparar as arestas e alcançar uma espécie de mínimo denominador comum.

Qual a origem da corrupção? Todas as pessoas são potencialmente corruptas? Onde a corrupção começa?
Barros - Somos todos desejantes e buscamos o prazer. Portanto, buscamos também instrumentos que nos permitam alcançar o prazer. Recursos materiais com os quais possamos comprar coisas que nos tragam prazer. Esses recursos, por sua vez, quase sempre requerem um esforço. Sendo assim, parece tentador ceder quando há uma situação que permite alcançá-los com um esforço reduzido.

Mas por que algumas pessoas aceitam e outras não? Ou, em determinadas circunstâncias, todo mundo aceitaria?
Barros - Muita gente resiste à iniciativa corruptiva. Isso significa que essa busca de recursos para o prazer pode ter uma contramão. Essa contramão pode ser recheada de temor – “vou ser preso” ou “vou me dar mal” – e, nesse caso, a pessoa age exclusivamente em função do medo. Mas há a possibilidade de resistir à corrupção mesmo sem ter medo. Aí é a questão moral, uma atividade interna, intrassubjetiva. Você presta contas a você mesmo. É uma avaliação interna da própria conduta, no sentido do respeito a certos princípios que, livremente, você decide respeitar. Quanto mais rica for a formação moral da sociedade, menos necessária é a repressão ostensiva da civilização sobre o indivíduo. Inversamente, quanto mais pobre for a formação moral, mais cerceamento é necessário. Hoje em dia, a corrupção é tratada muito mais como uma questão institucional do que como uma questão moral. Como se, dado certo sistema de governo, dado certas características institucionais, dada certa velocidade do vento, todos serão corruptos. Lamento, não funciona assim. Em última instância, sempre será possível dizer: “Esse jogo, eu não jogo”.

Do ponto de vista do indivíduo, se, em vez de escolher votar no “menos pior”, ele anulasse o voto, estaria sendo mais coerente com sua ética pessoal? Seria uma forma de dizer: “Esse jogo, eu não jogo”?
Barros - Claro. Claro, essa é uma maneira de acabar com o jogo. Ou de acabar com certo jogo. Se, no limite, ninguém tiver nenhum voto, você tem uma falência do jogo. Mas isso não significa muita coisa se não houver uma formação moral. Será criado outro jogo. E corre-se o risco de o novo jogo ser ainda pior que o anterior. É como quando se tem uma revolução armada e uma nova equipe toma o poder. Se não houver outro tipo de educação cívica, você vai substituir seis por meia dúzia e continuará a ter pessoas pretendendo assegurar privilégios particulares em detrimento do coletivo. A única solução seria uma revolução moral, ética.

Capa do livro recém-lançado (Foto: Divulgação)
Em uma régua, em que em um extremo está a moral e no outro, os mecanismos punitivos, onde está o Brasil?
Barros - Hoje em dia, existe uma presunção de desconfiança máxima. Você vai a um hotel e lhe dão um cartão para colocar no elevador. Ele dá acesso apenas ao seu andar. Quando um novo funcionário entra em uma empresa, tem que deixar foto, xerox do RG, ganha um crachá eletrônico que dá acesso ao andar certo. Essa desconfiança me lembra muito um forasteiro que chega ao castelo medieval e encontra um lago em volta do castelo, com jacarés e ponte que se eleva. A diferença é que agora é um pouco digitalizado. Se vivêssemos em uma sociedade onde todos tivessem plena consciência dos limites de sua conduta no sentido de não perturbar a convivência, não haveria crachá eletrônico, foto, RG. Não haveria nem recepção.

No Brasil, vocês veem que a corrupção aumentou, diminuiu ou continua a mesma ao longo dos anos?
Praça -Diminuiu. Mais escândalos de corrupção não significam mais corrupção. Significa mais corrupção tratada publicamente. Na ditadura, não tem notícia sobre nada. No sistema político, eu vejo um avanço grande, mas silencioso e paulatino, em relação a esse tema. Eu acredito em pequenas melhoras que vão se acumulando. Hoje, temos órgãos de combate à corrupção, como Controladoria Geral da União, Ministério Público, Judiciário, Polícia Federal e outros. Vinte anos atrás, eles não existiam ou não tinham recursos para fazer seu trabalho. Isso muda e tem impacto. Temos leis hoje, como a Ficha Limpa, Responsabilidade Fiscal, Anticorrupção, mecanismos de delação premiada. Então, tem melhorias no sentido da punição efetiva.

As melhoras ainda estão só no campo da punição, e não de um avanço moral?
Praça - É evidente que há um volume de recursos e oportunidades de poder muito convidativos. Mas soube de um caso que um ex-detentor de um cargo de confiança no Ministério da Agricultura, no governo Lula, falou que um dia foi chamado para uma reunião com outro político. Ele sabia que iriam oferecer alguns milhões de reais para fazer parte de um esquema. Então, ele não foi para a reunião. Porque se, fosse, seria muito mais difícil recusar.

No ambiente político, quando alguém deixa claro que não quer se corromper, não sofre represália?
Praça - Talvez em alguns lugares, sim. Mas não necessariamente. Quando há corrupção em um órgão público, não é necessário que ela seja generalizada. Até porque, se for, a chance de ser descoberta é muito maior. Por mais que eu veja mais avanços nos mecanismos de incentivo e de pressão, essa escolha moral ainda é possível.

Vocês veem avanço na democracia, ao longo dos anos?
Barros - Não. Me atrevo a dizer até um pouco o contrário. Meu olhar é de que a campanha de Lula contra Collor, em 1989, foi atravessada poe um debate ideológico infinitamente mais rico do que a atual.
Praça - Eu tenho um olhar diferente. Acho que a eleição de 1989 é muito difícil de comparar a qualquer outra posterior porque era a primeira eleição presidencial desde 1960. Uma geração inteira havia sido criada só pensando em ditadura versus democracia. Então, foi o momento de apresentar aquela pluralidade de opiniões e visões de mundo. Havia posturas diferentes dentro da própria direita e da própria esquerda. Depois de dois marcos políticos dos nossos tempos, que foram o Fernando Henrique Cardoso e o Lula, as políticas públicas ficaram muito limitadas. Em 1989, para acabar com a inflação, podia-se pensar em congelar os preços, em pedir um empréstimo de US$ 30 milhões ao FMI, entre outras soluções. Hoje, já existe um conhecimento muito maior sobre quais políticas públicas são relativamente eficazes e quais não são. Por exemplo, ninguém em sã consciência vai falar para acabar com o Bolsa Família ou com as universidades federais.

Nos EUA, os escândalos da vida pessoal dos políticos são abertamente discutidos em público, pela imprensa, e influenciam os eleitores. Já no Brasil, não é da mesma forma. Quando surge a notícia de traição amorosa por parte de um político ou até mesmo de um filho fora do casamento, parece não ter o mesmo impacto na popularidade em meio aos eleitores. A que se deve essa diferença?
Barros - A fronteira entre o público e o privado é cultural. Imagine o nível de detalhamento do caso Bill Clinton/Monica Lewinsky, em que ele toma a palavra para falar sobre onde não houve penetração. Tem que descer a esse ponto para se justificar. Esse é o tipo de assunto que, em nosso mercado político, está excluído, realmente não interessa. E isso é fruto de uma construção coletiva. Eu acho que estamos na frente dos Estados Unidos nisso, porque, na minha opinião, a questão sexual é extremamente pessoal, não tem a ver com o exercício da profissão.

De que maneira as formas de corrupção política nos Estados Unidos se diferem das brasileiras?
Praça - Se a gente olha a corrupção como aquela coisa do cidadão que vai pagar o policial para se livrar da multa, então, nos Estados Unidos, não tem corrupção nenhuma. Se a gente pensar na corrupção como lobby e interesses financeiros ditando leis, então os EUA é o país mais corrupto do mundo.
Barros - É verdade. Os interesses privados sobre o congresso americano são infinitamente mais explícitos e claros do que aqui, a ponto de os escritórios de lobby ficarem dentro do congresso.

Mas se é explícito caracteriza corrupção?
Praça - Se considerar corrupção como o fechamento do debate legislativo para o público em geral e a inclusão de apenas interesses privados fortes, então, é corrupção. Mas não fere nenhuma lei. Este é o ponto.

A tendência é o Brasil seguir o caminho dos Estados Unidos?
Praça - Não. O sistema político é bem diferente. O sistema eleitoral aqui incentiva muito mais essa corrupção tosca, de cabo eleitoral, dinheiro sujo para campanha do que a de lobby.

Qual o papel que vocês pretendem atribuir ao seu livro em meio ao debate atual sobre corrupção?
Barros - A pretensão do livro é complementar a leitura de jornal. A nossa preocupação é mais conceitual do que analítica. Embora o livro tenha sido apresentado em um momento eleitoral quente, ele transcende à disputa política desse momento.

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